Cor (A) de Lisboa

Depoimentos dos Amigos de Lisboa
Separata da Revista Olisipo nº 45 - 1949
Explicação:
     O Grupo «Amigos de Lisboa», sempre dentro da sua ideia de melhorar, prestigiar e valorizar a Cidade, lançou à curiosidade amorosa de escritores e de artistas, um tema de análise e de estudo que, parecendo à primeira vista pueril, se reveste de uma importância decisiva — a cor de Lisboa. Uma série de problemas logo se estabelece ao primeiro contacto com tal assunto, desafiando-nos para uns momentos de reflexão. Deverá ou não ser regulada a coloração das fachadas e empenas da capital? Justificar-se-á uma intervenção oficial em assunto que, no fundo, é um motivo de arte decorativa, sabendo-se que não é fácil de fixar normas regulamentares em questões deste género? Serão os recursos naturais do solo mais determinantes do que o gosto pessoal? Poderá a tradição impor-se às exi­gências da Moda? Estará na nossa mão o fixar a linha evolutiva da coloração dos prédios?
     Tudo isto, que é muito, e chama a capítulo variadas observações de carácter estético e utilitário, prático ou simplesmente poético, mereceu de algumas das personali­dades convidadas a dar um parecer, o seu depoimento; e assim, nas noites de 24, 25 e 26 de Novembro do ano úl­timo, três pintores (Martins Barata, Abel Manta e Carlos Botelho), dois críticos de arte (Armando de Lucena e Ma­tos Sequeira), um escritor teatral (Pereira Coelho), um jornalista (Norberto de Araújo), dois arquitectos (Cristino da Silva e Paulino Montez) e um escultor (Diogo de Macedo) preleccionaram no salão de conferências, em bre­ves períodos que não ultrapassaram um quarto de hora, sobre a cor ou as cores da Cidade.
     O público recebeu da mais agradada feição essas noi­tes de palestra, e concorreu, com a sua presença aplauditiva, às três amáveis sessões dos «Amigos de Lisboa», que foram presididas pelos «amigos» Dr. Alberto Mac-Bride, Engenheiro Ricardo Teixeira Duarte e Dr. Celestino da Costa, nosso Presidente da Direcção.
     Para que se não perca o valioso contributo dado ao estudo e solução do assunto, reunimos neste número do nosso Boletim os dez depoimentos prestados, onde se esta­beleceram pontos de vista do maior interesse, tanto sob o aspecto técnico como sob o aspecto meramente pictural e artístico, e cremos que tal contribuição será vista de boa mente pelas estâncias oficiais a quem pertence a supervi­são dos problemas citadinos.
     Os «Amigos de Lisboa», cônscios de terem propor­cionado este estudo preparatório, ficaram contentes do êxito da tentativa. Resta que a cidade acabe um dia por ficar igualmente satisfeita.
 
Depoimento do Pintor Sr. Martins Barata (25 de Novembro)
 
     Devo à amizade dos Amigos de Lisboa a lembrança do meu nome para esta conversa. Creio, sinceramente, que não sou pessoa indicada para isso, e quem me conhece bem, bem o sabe; quem não me conhece bem, levado pelo hábito de ouvir estas declarações de muitas bocas, ficará com a ideia de que isto que eu digo é falsa modéstia.
     Nada posso fazer — senão agradecer a todos: os que me lembra­ram e os que me escutam.
     E a melhor forma de agradecer parece-me que é o ser muito breve nas minhas palavras — não chegando a ocupar o tempo que me é concedido.
     Devo dizer, na verdade, antes de mais nada, e ainda que nisso pareça contradizer-me, que o meu conhecimento de Lisboa não se li­mita às vistas que toda a gente conhece.
     Eu sei de recantos deliciosos, ignorados da maioria.
     Basta dizer-se que fui eu aquele representante do «Dilecto» que fielmente acompanhou Norberto de Araújo nas suas «Peregrinações em Lisboa». Por pequena que seja a minha capacidade receptiva, forçosamente alguma coisa havia de ficar dos deslumbramentos que o meu inigualável cicerone me proporcionou.
     Depois, o convívio com o mestre Matos Sequeira e com a leitura de Castilho, Vieira da Silva e Pastor de Macedo levaram-me a con­jecturar a Lisboa dos tempos remotos, conjecturas a que dei e estou dando corpo.
     Espero, todavia, também poder ver Lisboa com olhos contemporâ­neos, embora incapazes de acompanhar as retinas dos belos coloristas que são Manta, Botelho e Lucena — para só citar os queridos camaradas que também aqui falaram — ou vão falar — com a competência especial que lhes dá o seu talento e o amor com que perscrutaram as belezas da nossa cidade.
*
     Pedem-me que eu me pronuncie sobre «a cor de Lisboa». Desde logo ao meu espírito se põe a dúvida do que seja esta «cor de Lis­boa», porque acima do episódio das cores das paredes — está a cor do conjunto.
     Se Lisboa fosse uma cidade plana ou quase — como Paris ou Londres — onde o panorama, mesmo quando muito grande é quase sempre visto dum nível muito baixo — a cor das paredes domina­ria tudo.
     Mas em Lisboa não é assim. Quem percorre a cidade está sempre a ver colinas e montes cobertos de casas. Quer dizer, mesmo o habi­tante de dentro da cidade, vê Lisboa por cima.
     Suponho indispensável atender-se a estes conjuntos parciais.
     O pintor que pinte Lisboa — e reporto-me aos camaradas que já aqui falaram — quase sempre se interessa pelos primeiros planos; por isso chamam — e com razão — a Lisboa uma cidade modesta e provinciana.
     E todavia Lisboa é, também, uma cidade esplendorosa.
     Disse-me uma vez o Tomás Colaço uma frase que ouvira, creio, a uma visitante estrangeira e que é pouco mais ou menos isto: «Lisboa é uma cidade onde tudo é lindo menos o sítio onde se está».
     No estado actual das coisas eu penso que mesmo os aspectos da nossa cidade vista de longe não são tão belos quanto o poderiam ser.
     Nesse ponto — e ainda noutros — eu estou de acordo com a pe­quena epidemia de «cólera» aqui levantada contra a grande epidemia da «febre amarela» que atacou as fachadas de toda a cidade.
     A cidade está triste e feia. Mas qual o remédio?
     A liberdade absoluta de pintar as fachadas, cada qual como qui­ser, liberdade que vem ao meu espírito tão espontaneamente como veio ao do Abel Manta?
     Talvez não: porque ele agora com isso espera ir encontrar certo recanto colorido com lindos rosas e verdes — e pode muito bem acon­tecer que lhe surja pela frente, quando lá voltar com a sua tralha de pintor, um conjunto de «sangue-de-boi», cinzento chumbo, verde gar­rafa — e uma empena negra...
     Liberdade sim, para certos locais: e essa mesmo condicionada a tons frescos, límpidos, claros.
*
     Eu suponho, de resto — e sem melindre para ninguém — que se há alguma qualidade ou profissão que se pode pronunciar com auto­ridade neste assunto — será ela a de arquitecto urbanista doublé de pintor.
     O pintor vê a questão sob um aspecto um pouco pessoal. Por isso — e visto que estamos numa terra de amadores — eu vou procurar «doubler» a minha profissão de pintor com a de urbanista curioso.
     E como tal fica salvaguardada a fatal insuficiência do que vou dizer.
*
     Naturalmente parece-me haver várias Lisboas na grande Lisboa. Em especial, duas: a antiga, a que foi moura e depois se alastrou pela Baixa,
     — e a outra, gigantesca, que nasceu e cresce, sempre em volta daquela.
     Todas essas Lisboas — ou seja a Lisboa inteira — não podem, não devem fugir a sublinhar a claridade da sua maravilhosa atmos­fera, que reflecte os espelhados do rio.
     Por isso Lisboa, toda, deve ser clara: e a Lisboa antiga, em es­pecial — deve ser branca.
*
     Lisboa é uma cidade do sul.
     O Porto, cidade granítica, em terras alcantiladas, defende-se ins­tintivamente da cor parda que o domina, colorindo as suas fachadas, minguadas pela extrema densidade de janelas e portas — em nesgas de cor que brilham como jóias em fundo escuro.
     Lisboa tem outro carácter, baseado no brilho radioso do largo Tejo, nas suas margens baixas e na sua própria expressão orográfica.
     Para estar de acordo consigo própria, Lisboa deve ser clara.
*
     Tive, há algum tempo, necessidade de fazer uma ilustração repre­sentando Lisboa moura. A orografia da cidade, no séc. XII, era diferen­te da actual e fui então levado a seguir a planta organizada pelo nosso mestre Vieira da Silva.
     Em todo o caso havia partes condizentes com a actual ondulação do terreno e por isso procurei «ler» essa ondulação através do casario: examinei-o de vários lados, trepei a pontos estratégicos e em horas várias. Impossível. As colinas não aparecem acentuadas, nem sequer denunciadas. Estão «camufladas» pelo conjunto pardo das casas multicolores.
     Ora se essa Lisboa fosse branca — como Évora, Arraiolos ou Estremoz — ainda que cheias de pequenos acidentes cromáticos — seria tão «legível» como elas. Os telhados desenharam as ruas e qualquer sombra de nuvem teria um recorte precioso.
     O encanto da sua forma seria presente a todos os olhos e a uni­dade da sua cor dar-lhe-ia um valor muito mais forte na temível com­paração com a unidade do Tejo. O conjunto admirável seria mais li­gado e homogéneo.
     Esta é uma razão, que reputo muito forte, pela qual Lisboa velha, quando vista de fora, ganharia em ser branca.
     Seria uma ilha de alvura no resto. Era uma consagração. E creio que negar-lhe a beleza seria como negar a beleza inegável de Évora ou Estremoz.
*
     Lisboa velha, vista de fora, deve ser branca. Mas como resultaria isso quando vista de dentro?
     As maiores objecções que se farão contra uma Lisboa velha caia­da, julgo que serão as seguintes — e todas se referem à vida interior da cidade
     — primeiro — a uniformidade do branco tornaria a cidade, aos olhos dos seus habitantes, monótona, senão fúnebre;
     — segundo — o seu aspecto seria pobre, por ser pobre a sua cor;
     — terceiro — com sol forte — seria oftálmica.
     Contra isto penso:
     Primeiro: — O branco não traz a monotonia. Os exemplos vivos das terras citadas já de si o atestam exuberantemente e bem melhor do que quaisquer palavras minhas.
     Os telhados não são brancos — e a sua enfiada desenha as ruas em manchas deliciosas de imprevisto e de recorte; e Lisboa, repito, dada a sua configuração acidentada, mesmo de dentro se vê muitas vezes como de cima.
     Depois, sem estragar o conjunto, dando variedade na unidade, há infinitas notas de cor possíveis: gelosias, caixilhos, varandas, bar­ras e cunhais. Com o branco todas as cores vão bem, mesmo as mais Violentas, quando usadas com discreção.
     O casario branco não é monótono. Ele daria à cidade velha uma unidade cromática; mas dentro dessa unidade, além das notas vibran­tes de cor que acidentalmente a animassem, quantas subtis variações segundo as horas do dia e a catadura do tempo, quantos gris leves ou profundos, violáceos ou doirados, perlados ou róseos! Por outro lado quantos contrastes, quantos arabescos de sombras projectadas, lumi­nosas, estreitas e frescas da nossa Lisboa antiga!
     Segundo — A cal não é um material pobre. É um material econó­mico, o que não é o mesmo. A sua renovação é fácil e rápida, é exem­plarmente salubre e fresco e o seu aspecto é rico, principalmente quando junto à pedra.
     Esse argumento não vale nada.
     Terceiro — Nas ruas estreitas — e a própria Baixa só tem ruas estreitas, o Sol, batendo na cal, não cega o transeunte: Pois de duas uma:
     ou o Sol está baixo — de manhã ou de tarde — e só ilumina então o alto dos edifícios, que reflectem, para as ruas, muita luz — mas difusa,
     ou Sol está alto, e a sua incidência na cal das paredes é oblíqua e não é muito forte.
     É assim que se obtém, nas casas e nas ruas, o ambiente fresco que de pequenino me habituei a ver no meu Alentejo tão quente — e tão próximo parente da nossa Lisboa.
     Assim esta Lisboa velha, seja ela vista de longe, seja vista de perto, ganharia muito, no meu entender, em ser toda branca.
*
     E a baixa?
     Também sugiro para ela — mas não insisto, no branco. Há mui­tas e grandes aberturas nas fachadas pombalinas e essas poderiam ser bem cheias de cor. Bastaria isso e o rodapé de edifícios comerciais para que a Baixa não deixasse de ter a variedade, que tão desejada é. Poderiam as ruas ter cada uma seu tom leve ou poderiam ser de va­riados tons leves à base de cal. Nunca a óleo.
     Mas já pensaram bem na beleza que teriam as ruas da Baixa, todas de um branco imaculado e cheias de notas de cores alegres e frescas? Como não brilhariam aquelas cantarias, que aspecto inédito, não se ofereceria aos olhos estranhos, desta Lisboa que todos nós que­remos diferente das outras capitais?
*
     A restante Lisboa deve ser clara, pela razão primeira apontada. Mas a própria largura das ruas e das Avenidas, a geometria da sua planificação, a sua própria génese construtiva opõem-se a uma uni­formidade de cor, mesmo o branco. Não foi feita para ser caiada — em especial a parte nova. Toda branca, seria uma necrópole.
     Para aí — todas as cores aceitáveis — embora haja fachadas dum cimento tão armado que não se deixam tomar por um pouco de suavidade e de alegria.
     Apenas a Lisboa que foi feita para ser branca deve ser branca. E essa é a Lisboa antiga compreendendo talvez a nobre e discreta monumentalidade pombalina.
     Os azulejos — esses estão bem, sempre e em todo o lado.
*
     Não se trata de negar Lisboa europeia.
     Trata-se de a fazer mais sincera e mais simples, na sua rica modéstia — colocando-a sempre na Europa — mas bem no sítio que os Deuses lhe destinaram.
 
 
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